Como tudo começou
Chovia a cântaros quando chegamos na marina Agana, em Marina, na Croácia, para pegar o veleiro. A reserva, feita com dois meses de antecedência não poderia ser modificada, e só nos restava enfrentar o temporal velejando pela Croácia. Pegamos nossas bagagens e fomos conhecer nossa nova casa náutica. O veleiro Aria IV tem 42,3 pés, três cabines, dois banheiros e uma mesa na sala que pode se transformar em uma quarta cama. Seríamos só nós dois, uma semana velejando pelo mar Adriático. A previsão do tempo não poderia ser capaz de acabar com a empolgação e ansiedade que há dois meses estávamos carregando conosco.
Fizemos todo o trâmite do aluguel com a empresa Wind Charter, que é a representante da Moorings no Brasil. A recepção foi das melhores. Na primeira hora uma funcionária nos deu uma aula sobre as principais ilhas da região, onde tinham marinas, onde tinham poitas (boias para amarrar o barco), onde poderíamos ancorar com segurança. Nos passou dicas de aplicativos como o Windy, para a previsão do tempo e o MySea para fazer buscas de tudo o que poderíamos encontrar nas ilhas – de restaurantes a lojas de câmbio. Em seguida, um rapaz veio nos falar sobre todas as funções do barco, nos mostrou onde cada item estava guardado, nos deu dicas e nos passou algumas informações importantes. Na mesa, um presente dava ao boas vindas: um kit com azeitonas, azeite e vinho, tudo da Croácia. Começamos bem.
Compras no mercado e navegação – Velejando pela Croácia
Depois de guardarmos nossas coisas, saímos para fazer compras. Primeiro desafio já se apresentou de cara. Como saber se a manteiga é com ou sem sal com tudo escrito em croata? Cadê o creme de leite fresco? Ficamos um tempão tentando garimpar os itens que precisávamos com a ajuda do Google Tradutor. Muitas outras coisas ainda iriam nos desafiar nesta viagem. A começar pelo dia seguinte, quando fomos treinar a atracação, que Fernando tinha pouco experiência e eu, nenhuma. Um funcionário nos deu algumas dicas e entramos e saímos da marina três vezes até ficarmos mais confiantes para, enfim, navegar.
Já era final do dia quando chegamos na ilha de Solta, na enseada de Sesula, para jantar. Como o restaurante tinha poitas (boias para amarrar o barco), resolvemos que o mais prudente seria dormir ali na primeira noite (nosso contrato de aluguel proíbe navegação noturna). O mar estava calmo e tinham pelo menos uns 20 veleiros ao nosso redor. Na chegada, um rapaz nos ajudou com a amarração do barco, mas no dia seguinte seríamos nós os responsáveis por soltá-lo.
Os peladões – Velejando pela Croácia
Acordamos cedo e ficamos olhando como os nossos vizinhos faziam para soltar o barco. Será que vamos dar conta? Fui para dentro da cabine preparar o café da manhã, enquanto Fernando organizava nossa saída. De repente, ele é surpreendido com um cara pelado no veleiro ao lado. Num primeiro momento, achamos que poderia ser só um cara, que resolveu aproveitar que estava quase todo mundo dormindo ao redor, para curtir o sol. Mas logo apareceu mais um, depois outro, e ficamos nos perguntando se teríamos ido parar em uma ilha de nudismo sem saber. Ninguém nos outros barcos demonstrava qualquer reação.
Mais tarde, quando fomos para outra enseada, vimos outro cara nu e pensamos que realmente devia ser um hábito local. O mais inusitado é que só vimos homens sem roupa por ali. Não temos como saber se os caras eram croatas, porque a região atrai muitos turistas, mas percebemos que a maioria das pessoas reagiam com bastante tranquilidade e sem qualquer sexualização.
Quando mais da metade dos nossos vizinhos velejadores já tinham seguido seu rumo, resolvemos tentar soltar nosso barco para também ir conhecer novas ilhas. Entrei no bote e fui até a amarração feita com as cordas em alguns ganchos nas pedras. Fernando engatou a ré para afrouxar o nó e conseguimos terminar a missão bem sucedidos.
Parada para almoço em Necujam
Seguimos para algumas outras enseadas de Solta – Necujam, onde ancoramos e fizemos um almoço durante a tarde e Stomorska, onde atracamos no cais da cidade (town quay, em inglês) para dormir. Essa é uma boa opção de atracação. Mais barata que as marinas, normalmente oferece mais espaço entre um barco e outro e possui toda a infraestrutura de energia e água.
Como seria nossa primeira manobra, estávamos um pouco receosos, mas deu tudo certo. Os velejadores do barco ao lado nos deram algumas dicas e, no final, quando já estávamos com tudo resolvido, nos ofereceram vinho e cerveja de boas vindas. Velejadores, no geral, são bem simpáticos e amigáveis.
Stomorska – Velejando pela Croácia
Em Stomorska nos deparamos com os primeiros exemplos da arquitetura da região, que seria dominante nos dias seguintes do passeio. Muitas casas e prédios feitos de pedras. Compramos algumas coisas que estavam faltando para o café da manhã e tentamos, inutilmente, encontrar um licor para o Fernando. Na Croácia, só encontrávamos licores locais com um teor alcoólico bem menor do que os que ele está acostumado. O jeito foi deixar a vontade de lado e ir dormir na apertada caminha do nosso veleiro.
Os golfinhos – Velejando pela Croácia
O dia acordou chuvoso e tivemos que encher o tanque de água do barco segurando a mangueira em uma mão e o guarda-chuva em outra. Ambos de casacos, deixamos Stomorska navegando em direção a ilha de Brac. O dia estava feio, nublado, o que dava um certo desânimo. Fui lá para a cabine e comecei a resolver umas questões administrativas no computador, quando Fernando gritou lá do cockpit algo que não consegui entender. Estava tocando um samba na hora. Segui de olho no computador e ele gritou mais uma vez. Resolvi, então, subir para ver o que ele queria.
“Acabei de ver uns golfinhos, foram naquela direção”, ele disse. E tirou o barco da rota seguindo os animais até nos depararmos com vários deles, pulando, bem perto do barco. Comecei a chorar, tamanha foi a emoção. Na infância já tinha visto golfinhos em parques aquáticos americanos, já tinha feito foto com tubarão no colo e visto shows de baleias. Mas é muito diferente ver no mar. Não existe interferência humana, é a real força da natureza, com toda sua beleza e intensidade. Foi um momento especial e inesquecível.
Milna – Velejando pela Croácia
Depois de mais algumas milhas de navegação, chegamos à enseada de Milna, um pequeno e charmoso vilarejo, com praias de pedras, restaurantes e hotéis. Atracamos na primeira marina, que fica logo na entrada, do lado esquerdo. Mais uma oportunidade de treino para nossas manobras. Trancamos o barco e seguimos para dar uma volta. Almoçamos em um dos restaurantes sugeridos pela empresa Mooring´s e tomamos a saideira no bar de um hotel na beira-mar. O único onde encontramos Cointreau para Fernando matar as saudades.
A famosa Hvar
Apesar do frio – ambos passamos o dia de moletom, o sol finalmente saiu e a cor do mar ficou perfeita. Saímos de Brac e fomos navegando até a famosa Hvar, na torcida de encontrar vaga na marina de Stari Grad. Como chegamos relativamente cedo, não tivemos problemas para atracar. Este era sempre o pequeno stress do dia. Sair de um lugar sem saber para onde iríamos e se encontraríamos lugar para dormir com segurança e tranquilidade. Depois desta experiência, temos certeza que a próxima temporada navegando será bem mais fácil.
Do nosso lado esquerdo, um grupo de alemães pouco simpáticos. Deixamos o barco e seguimos para conhecer a cidade. Almoçamos em um restaurante com toalhas vermelhas e um garçom gente boa. Eu ainda não havia me enjoado da comida mediterrânea e passava os dias pedindo peixes e frutos do mar de todos os tipos.
Depois de andarmos um bocado, fotografando todas as esquinas, vimos um grupo de jovens vestidos de camisas brancas e calças pretas com instrumentos musicais nas mãos. Perguntamos do que se tratava. “Faremos uma apresentação hoje na praça principal, vocês estão convidados”. Stari Grad com violinos, flautas e violoncelos seria imperdível. A praça era pequena mas estava lotada. Metade das pessoas sentadas em cadeiras improvisadas e a outra metade em pé.
Show em Stari Grad – Velejando pela Croácia
Então, aparece um moleque de uns 15 anos, com cabelos loiros compridos, uns óculos escuros de gatinho, descalço e cheio de atitude, pega a guitarra, se aproxima do microfone e manda ver uma música do Oasis, acompanhado por outros dois. Na nossa frente, uma senhora, que provavelmente viveu na República Socialista da Iugoslávia, e que não conhecia a banda de rock inglesa, se mostrava animada e mesmo sem acompanhar direito o ritmo, jogava a luz do celular para o alto em um movimento dançante.
O sino da igreja tocou às nove horas em ponto, atrapalhando um pouco a performance. Dava para ver que o espetáculo era local, ninguém se preocupava em falar inglês, ninguém explicava o que estava acontecendo. Os músicos eram estudantes e, vez por outra, desafinavam. A menina que se arriscou a cantar, se enrolou com o papel onde estava escrita a letra da canção e enrubesceu. Mas foi bonito assistir ao espetáculo. Ali, naquela rua rústica, cercada por uma igreja e paredes de pedra, com aquele tanto de gente falando uma língua que a gente não conseguia entender, a gente se entendeu. E se emocionou. Caramba, Croácia, que presente bonito.
Acidente e vela
A previsão do tempo indicava ventos de 20 nós de velocidade. E dia de vento forte é dia feliz para velejadores. Acordamos animados. O problema é que, vento forte para velejadores ainda sem tanta experiência em atracações se torna também um desafio na hora de sair da marina. De manhã, quando fomos à feira, Fernando já estava refletindo como seria a nossa saída. O barco tinha ficado torto na noite anterior e estávamos meio inseguros quanto a soltura dos cabo. Nossa sorte foi que nosso vizinho da direita tinha ido embora e estávamos com mais espaço para manobrar. Eu fui para a proa do veleiro para liberar o cabo, enquanto Fernando cuidou dos cabos de popa. O problema é que um deles ficou enrolado.
Aí o barco foi sendo levado pelo vento. Fernando gritou para mim: O cabo ficou preso. Eu, meio sem pensar, respondi: Quer que eu pule e vá nadando para soltar? O veleiro foi sendo levado pelo vento até que chegou bem perto do cais. Mas o que poderia parecer um problema, foi o que nos ajudou, porque eu pude pular do barco rapidamente, fui até o cabo, desfiz o nó e saí correndo que nem um Usain Bolt para pular no barco de volta antes que ele fosse levado de vez. Na hora foi um stress danado. Hoje, quando a gente lembra de tudo, a gente ri. E, claro, foi um grande aprendizado, acredito que isso nunca mais aconteceria conosco.
O mergulho no Adriático – Velejando pela Croácia
O dia amanheceu lindo. Céu azul e calor. Depois de uma longa caminhada por Milna e suas praias de pedras, navegamos já em direção à Marina. Seriam algumas boas horas de navegação. Pela primeira vez na semana, me permiti relaxar e beber um pouco mais. Nos últimos dias estávamos sempre na expectativa de atracações e afins e só tomávamos nosso vinhozinho depois de estarmos parados em algum lugar seguro. Fernando manobrou muito bem.
Resolvemos fazer uma paradinha no caminho, na enseada de Okrug, para tentar um mergulho. Durante todos esses dias ainda não tínhamos tido vontade de entrar na água porque ela é muito gelada e o tempo estava fresco. Mas com o calorzão começando a chegar, era a hora de tentar. Ancoramos e colocamos primeiro só os pés. Parecia água de cachoeira, uns 24 graus. Mas eu fazia questão. Tomei coragem e tibum, dei meu primeiro mergulho no Adriático. Fernando ainda estava sem vontade e só iria mergulhar dias depois, já em Dubrovnik.
Último dia
Nós analisamos a possibilidade de dormir por ali, a enseada é super protegida e tranquila, mas nosso check out seria às nove da manhã do dia seguinte e ainda tínhamos muitas coisas para organizar. O jeito foi seguir viagem. Fizemos nossa última refeição no cockpit, olhando o movimento dos velejadores voltando, como nós, cheios de histórias para contar.
Foram dias felizes. Mas, muito além disso, foram dias marcantes, diferentes, desafiadores e com um bocado de adrenalina. Desembarcamos com aquela sensação maravilhosa de superação. E com uma certeza: a gente vai voltar!
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